Dano moral não é só sofrimento: a crescente superação do "mero aborrecimento"
Em sua obra A indústria do mero aborrecimento, Miguel Barreto (2016) registra que a Emenda Constitucional 45, que foi promulgada em 2004, reformou o Poder Judiciário e criou o Conselho Nacional de Justiça. Em 2009, o CNJ implantou metas de produtividade para o Poder Judiciário, especialmente para reduzir o acervo de processos existentes bem como para que fossem julgados mais processos do que os distribuídos durante o ano.
Barreto acrescenta que, objetivando evitar a multiplicação de processos gerados por condutas repetidamente abusivas de certos fornecedores, naquela época os tribunais brasileiros criaram uma “jurisprudência defensiva”, ora para negar indenizações, ora para reduzir seu valor, de modo a desestimular novas ações.
Nesse contexto surgiu a hoje chamada jurisprudência do “mero aborrecimento”, que pode ser resumida neste julgamento de 2009 do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 844.736: “Só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo”.
Tal entendimento reverbera um conceito antigo de “dano moral”, cujo grande expoente no Brasil é o professor Sergio Cavalieri Filho. Embora já esteja superado pela doutrina contemporânea e pelo próprio autor que atualizou seu entendimento, tal conceito continuou a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro. Nesse sentido Fernando Noronha (2013) acrescenta, inclusive, que existe uma “tradicional confusão” entre danos extrapatrimoniais e danos morais presente em praticamente todos os autores reputados como “clássicos nesta matéria”.
Sendo assim e com base em diversos autores como os próprios Cavalieri e Noronha, passei a sustentar que os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados de “danos morais”, podem ser classificados em duas espécies: dano moral stricto sensu e dano moral lato sensu. O primeiro decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa — cujo resultado geralmente são sentimentos negativos como a dor e o sofrimento —, enquanto o último resulta da lesão a um atributo da personalidade ou da violação à dignidade humana.
Após estudar a problemática na teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor (DESSAUNE, 2017), cheguei à conclusão que o entendimento jurisprudencial de que o consumidor, ao enfrentar problemas de consumo criados pelos próprios fornecedores sofre “mero dissabor ou aborrecimento” e não dano moral indenizável, revela um raciocínio construído sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem ou interesse jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era a dor, o sofrimento, a humilhação, o abalo psicofísico, e se tornou qualquer atributo da personalidade humana lesado. O segundo (equívoco) é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem ou interesse jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são o seu tempo vital e as suas atividades existenciais – como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar, etc. O terceiro (equívoco) é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte o lógico é concluir que as situações de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu indenizável.
Com a disseminação da nova teoria a partir de 2012, os tribunais brasileiros paulatinamente passaram a adotá-la e a aplicá-la, assim iniciando um processo de gradual transformação daquela jurisprudência defensiva que, até então e em grande medida, não reconhecia a existência de danos morais em casos em que eles estavam claramente presentes, sob o fundamento de haver “mero dissabor ou aborrecimento” normal na vida do consumidor.
O auge da superação da jurisprudência em tela ocorreu em dezembro de 2018, quando o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro revogou por unanimidade de votos, após provocação da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção do Rio de Janeiro, o Verbete Sumular 75, que havia sido criado em 2004 e ficara conhecido como a “súmula do mero aborrecimento”. Tanto o pedido da OAB-RJ quanto a decisão do TJ-RJ basearam-se na teoria do desvio produtivo.
Em dezembro de 2019, desejando avançar ainda mais na defesa constitucionalmente garantida ao vulnerável, a OAB-RJ pediu ao mesmo TJ-RJ a "sumulação" da teoria do desvio produtivo para trazer mais proteção aos consumidores que, a despeito de todos os recentes avanços doutrinários e jurisprudenciais, ainda são lesados diariamente num de seus bens mais preciosos: o seu tempo vital.
Portanto é lícito concluir que dano moral não é só sofrimento; é também lesão ao tempo – entre outros bens juridicamente tutelados. Afinal, o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve; e a vida, enquanto direito da personalidade e direito fundamental, é constituída de atividades existenciais que nela se sucedem.
Por Marcos Dessaune - Consultor Jurídico